Há dias em que acordo antes do sol. A paróquia ainda respira silêncio, mas já percebo, nos primeiros passos que dou em direção à capela, que o dia carregará seus próprios desafios. O Evangelho daquele dia pode falar de amor, justiça, serviço — palavras sempre belas —, mas basta abrir a porta lateral da igreja para perceber que, lá fora, há um mundo inteiro esperando que essas palavras ganhem carne.
A Doutrina Social da Igreja, às vezes vista como um tema distante, técnico ou reservado aos documentos do Magistério, para mim nunca foi apenas um conjunto de textos. Ela é, na prática, o fio condutor que tece tantos dos encontros, lágrimas, esperanças e decisões que atravessei ao longo do ministério.
Aprendi cedo que a Doutrina Social está em muitos lugares — e, sobretudo, em rostos. No trabalhador que me procura porque perdeu o emprego; na mãe que chega aflita porque não sabe como alimentar os filhos; no idoso que, mesmo sozinho, insiste em repartir seus poucos mantimentos com quem tem menos. Eles, de algum modo, me lembram os profetas que bradam por justiça, me lembram Jesus que cura, acolhe e denuncia.
Claro, há as fontes formais da Doutrina Social da Igreja:
— A Sagrada Escritura, que nunca separa fé de vida;
— A Tradição e o Magistério, com suas encíclicas que atravessam séculos e realidades;
— O Catecismo, que organiza os princípios como quem oferece um chão seguro;
— A ação pastoral, onde tudo isso se torna carne, suor, entrega.
Mas a vida presbiteral me ensinou uma quinta fonte — talvez a mais exigente: o contato diário com as dores e alegrias do povo de Deus. É ali que a Doutrina Social deixa de ser teoria e me provoca a tomar decisões concretas. Como acolher melhor? Como ajudar sem substituir? Como promover dignidade e não dependência? Como formar consciências para que o Evangelho transforme estruturas e não apenas consola corações?
Lembro-me de uma senhora que, certa vez, me disse no fim da missa: “Padre, Deus não quer só o meu amém, quer também a minha atitude.” Guardei essa frase como quem guarda um tesouro. Ela expressa a alma da Doutrina Social da Igreja: Deus quer um povo que reza, sim, mas que também age; que contempla, mas que também transforma; que ama na devoção, mas também no cotidiano.
E é no cotidiano que ela se revela mais urgente.
Quando orienta nossas escolhas de consumo.
Quando nos ajuda a tratar cada trabalhador com dignidade.
Quando denuncia injustiças tão normalizadas que quase já não incomodam.
Quando nos lembra que cuidar da criação é cuidar da Casa Comum.
Quando nos convida a fazer da comunidade um lugar de encontro e não de exclusão.
Ser sacerdote é, também, ser guardião dessa chama. É anunciar, com a voz e com a vida, que o Evangelho não cabe apenas em palavras — ele quer moldar nossas relações, nossas decisões, nosso compromisso com os pobres, com os vulneráveis, com a paz, com o bem comum.
E assim sigo, dia após dia, caminhando entre a capela silenciosa e o mundo ruidoso. Em ambos, encontro Deus. Em ambos, encontro sinais da Doutrina Social da Igreja. Em ambos, descubro que a fé, quando toca a vida, abre caminhos inesperados — caminhos onde o Reino de Deus começa aos poucos a despontar, como o sol tímido que vejo nascer quando começo meu dia.
Pe. Marcelo Campos da Silva D’ippolito
Pároco da paróquia Nossa Senhora da Conceição – Rio das Ostras/RJ